A saúde pode ser comparada a um cartão de crédito, que podemos utilizar ocasionalmente ou em tempos de necessidade, mas eventualmente vamos ter de pagar a conta. No entanto, se continuarmos a utilizar o cartão de crédito constantemente sem reabastecer os fundos, encontraremos uma situação bastante complicada. Da mesma forma, a nossa saúde não pode ser constantemente exigida sem uma renovação adequada, não podemos pedir um “crédito” indefinidamente sem levar com as consequências.
❗ Se persistirmos em exigir que o corpo se esforce e trabalhe sem proporcionar o tempo e o suporte necessários para a recuperação, as consequências serão inevitavelmente negativas.
Naturalmente, podemos ocasionalmente procurar expandir a nossa capacidade física e testar os limites do nosso corpo, pois ao fazê-lo, adquirimos aprendizagens valiosas. Coisas difíceis podem tornar-se em experiências profundamente transformadoras.
Mas depois de testar e levarmos o corpo ao limite vamos também ter de pagar as contas e dar-lhe o tempo necessário para que este possa recuperar e adaptar.
❗ Treinar de forma intensa sem uma recuperação de qualidade é receita para o desastre.
Neste artigo, vou abordar diversos tópicos relacionados com o estímulo de treino, destacar a importância do processo de recuperação, identificar diferentes tipos de fadiga. Falamos também dos efeitos de supercompensação, sobretreino e algumas estratégias para maximizar a recuperação.
Homeostase – Estímulo – Recuperação – Sobretreino e Supercompensação
Para assegurarmos tanto o rendimento quanto a saúde, é crucial estabelecer um equilíbrio entre o nível de estímulo que impomos ao nosso organismo e a quantidade de tempo que lhe concedemos para recuperar, permitindo assim a aquisição de todos os benefícios adaptativos do treino.
A adaptação ao treino pode ser descrita como uma resposta natural do nosso organismo à aplicação regular, metódica e sistemática de estímulos de treino. Neste processo, procuramos promover a reorganização do nosso sistema biológico, alterando os seus limites de funcionalidade.
Estímulo – Treino Desportivo
- O objetivo do treino é a melhoria do desempenho dentro do universo específico da atividade física ou modalidade desportiva praticada.
- É um processo complexo, que tem como base a superação do nosso nível atual de rendimento (nível base), que nos habilita a desenvolver recursos: Técnicos – Tácticos – Energéticos – Psicológicos
- O treino é um processo que decorre da aplicação sistemática e progressiva de estímulos de treino, com a magnitude (intensidade) necessária para desencadear mecanismos adaptativos.
Homeostase (Estado Estável)
É importante perceber que mesmo quando nos encontramos parados fisicamente o nosso organismo continua em atividade, onde as funções fisiológicas básicas são mantidas mesmo em situações de repouso. Qualquer sistema biológico como o nosso organismo encontra-se em Homeostase, o que quer isto dizer?
- É a situação de equilíbrio dinâmico entre os processo que concorrempara a estabilidade e os que apostamente promovem ou destroem este equilíbrio (estímulo/treino).
- A homeostase pode ser perturbada com a realização de uma tarefa motora de magnitude considerável (ex.: sparring de jiu-jitsu, treino de força) activando-se mecanismos de restauração do equilíbrio destruído que, desde que assegurados os recursos energéticos e o tempo de descanso e recuperação necessários, promovem uma resposta que nos vai permitir superar o nosso nível base inicial.
A isto dá-se o nome de processo de Supercompensação, a seguinte figura mostra o modelos simplificado desse processo.
Modelo simplificado de supercompensação.
A – Fase de alarme (estímulo / treino): Fase de treino que corresponde à aplicação do estímulo, onde se verifica uma diminuição da nossa capacidade adaptava por efeito de fadiga. Um estado de fadiga controlado é desejado e constitui uma das condições fundamentais para que ocorra o processo adaptativo.
B – Fase de Recuperação / Fase Anabólica: Ocorre logo que se interrompe o estímulo do treino, onde se dá inicio a fase de recuperação muito importante.
C – Fase de Supercompensação: Durante o processo adaptativo, é possível que a fase anabólica proporcione um estado adaptativo a curto prazo e temporário em que vamos ultrapassar a nossa capacidade funcional inicial – base.
D – Fase de Adaptação Reversível / Fase Regresso (destreino): Atendendo à reversibilidade que todos e qualquer estímulo utilizado em treino comporta, esta fase de supercompensação não vai ser estável e vai eventualmente desaparecer, caso não seja aplicado um novo estímulo de treino.
Quando vai desaparecer?
Isso vai variar muito entre indivíduos e são vários os fatores que entram na equação: idade, sexo, nível de treino inicial, alimentação, fatores ambientais, condição física inicial, experiência e tempo de treino, etc. Este mecanismo fisiológico deriva do que é chamado de Síndrome Geral de Adaptação (SGA) – que foi proposto por Selye. Onde são propostas 3 fases distintas na resposta adaptava ao estímulo:
Fases da Resposta Adaptativa – SGA.
Dependendo da intensidade e magnitude do estímulo do treino vão acontecer 2 coisas:
1 – Pode ocorrer a Exaustão se os recursos energéticos e funcionais se esgotarem ou se estes se encontram limitados.
2 – Ou Adaptação, no caso de conseguirmos satisfazer e fazer face ao desafio colocado.
❗ É importante notar que a nossa capacidade de realizar trabalho é reduzida logo após uma sessão de treino.
✓ É como acabar de treinar peito e tríceps e depois tentar bater o nosso recorde no supino.
✓ Não vai acontecer, pois já fatigamos os músculos responsáveis pelo movimento.
É apenas depois de recuperarmos da sessão de treino e com o equilíbrio certo entre estímulo e recuperação (supercompensação) que a nossa capacidade de trabalho vai aumentar gradualmente ao longo do tempo.
Algo que vai apresentar o seguinte gráfico:
Aumento gradual da capacidade em resposta ao treino – recuperação e supercompensação.
Mas quando o período de recuperação é muito curto ou a intensidade e magnitude do estímulo de treino foi muito severa – vai levar à exaustão e sobretreino.
O Sobretreino
O sobretreino resultará inevitavelmente na redução da nossa capacidade de trabalho, aumentando o risco de doenças e lesões. Embora o estímulo e a fadiga no corpo sejam benéficos, é crucial controlá-los, pois um estímulo sem repouso é uma receita para o fracasso. O treino, por si só, não promove melhorias nos nossos níveis de condição física. Funciona apenas como um estímulo, induzindo um stress no organismo que o motiva a produzir melhorias.
É crucial perceber este conceito. Acreditar que o simples acto de treinar por si só resulta em melhorias pode levar a uma falsa suposição de que mais estímulo equivale a mais resultados e melhorias. No fundo as adaptações produzidas pelo nosso corpo em resposta a um determinado estímulo são apenas um mecanismo de protecção contra possíveis futuras exposições a um mesmo nível de stress.
Recuperação Insuficiente leva à redução de performance, saúde e lesões.
Existem Situações Onde Podemos Comprometer a Saúde?
Podem certamente existir alturas na nossa visa onde vamos estar menos preocupados e onde colocamos a nossa saúde para segundo plano. Isto porque a vida pode apresentar situações em que o nível de stress é muito alto ou onde não possuímos o tempo e a quantidade de recuperação suficiente.
Exemplo:
- Podemos estar no meio de um campo de treino a preparar para uma competição.
- Podemos estar a estudar para exames da faculdade ou temos trabalhos para entregar e prazos para cumprir e apenas conseguimos dormir algumas horas.
- Podemos ter abraçado um novo projecto profissional e não ter tempo de treinar.
- Podemos ter sido pais e deixamos de ter o privilégio de ter uma noite de sono tranquila e interrupta.
- Tal como podemos também estar a aproveitar um período de ócio programado.
Seja qual for o motivo, é importante perceber que lá porque até conseguimos manter esse ritmo por algum período de tempo, não quer dizer que seja saudável ou sustentável a longo prazo. Mais tarde ou mais cedo vamos ter de pagar o preço, não podemos estar constantemente a utilizar o cartão de crédito indefinidamente certo?
Resposta Adaptativa ao Estímulo
A resposta adaptativa pode está dividida em 2 níveis, Rápida ou aguda e Crónica ou a prazo:
Níveis da Resposta Adaptativa
A adaptação a longo prazo vai tornando-se mais efetiva quando damos ao nosso organismo estímulos de maior intensidade e magnitude com alguma frequência. Estas adaptações produzem as modificações estruturais necessárias para garantirmos uma adaptação consistente na nossa habilidade funcional.
Como referido anteriormente, a relação estímulo-adaptação passa sempre pelo importante processo de recuperação e os estímulos devem ser sempre planeados e controlados de forma a evitarmos criar situações de esgotamento, exaustão ou fadiga profunda – levando muita vez a lesões.
Relação Estímulo – Adaptação
Estímulos – Adaptação Funcional
A nossa adaptação funcional acaba por ser o resultado do somatório de todas as transformações em resposta à repetição sistemática de estímulos de treino – isto porque estímulos isolados não vão ser suficientes para conseguirmos consolidar novos estados de prontidão, por outras palavras – aumento do nosso nível base inicial.
Adaptação ao Estímulo de Treino.
É crucial mantermos um certo nível de intensidade nos estímulos de treino para alcançar resultados significativos. Se o estímulo for demasiado fraco, o organismo pode não reagir adequadamente, comprometendo o processo de adaptação. O nosso corpo é uma “máquina” extremamente eficiente, sempre em busca de minimizar o gasto de energia. Não investirá recursos preciosos no aumento do volume muscular, densidade óssea ou no aprimoramento do condicionamento cardiovascular e metabólico, a menos que tenha uma razão válida para tal.
No entanto, se o estímulo for excessivamente intenso, como mencionado anteriormente, e ultrapassarmos significativamente o nosso nível de capacidade funcional, podemos esgotar os recursos energéticos disponíveis, tornando-se uma agressão com efeitos extremamente negativos para o corpo.
Como Podemos Observar Adaptações Biológicas ao Treino?
Alterações Induzidas Pelo Treino.
A imagem seguinte apresenta um modelo do processo de adaptação que está inerente ao processo de treino. É um gráfico bastante simplificado, mas constitui a base para conseguirmos perceber melhor os modelos de preparação para atletas:
Processo de adaptação em treino desportivo.
Quando nos encontramos bem treinados vamos ter respostas adaptavas mais rápidas, comparativamente a indivíduos menos treinados. O tempo que precisamos para que ocorra adaptação vai também depender diretamente da complexidade dos estímulos e dos constrangimentos fisiológicos e psicológicos inerentes.
Num estado bem treinado, as respostas adaptativas tendem a ser mais rápidas em comparação com indivíduos menos treinados. O tempo necessário para que ocorra adaptação está diretamente relacionado com a complexidade dos estímulos e os constrangimentos fisiológicos e psicológicos inerentes.
Fadiga – Recuperação
- A fadiga e a recuperação são processos inerentes do processo de adaptação ao treino.
- Não é nada mais do que a manifestação do nosso corpo quando ocorrer uma incapacidade temporária de mantermos uma determinada tarefa ou atividade física.
- Dependendo da duração, intensidade, volume e frequência dos estímulos os nossos recursos energéticos vão sendo mais ou menos utilizados.
- Os estímulos podem afetar parcial ou completamente as nossas reservas, isso vai levar a uma necessidade de abrandar a intensidade e quando levadas ao limite até mesmo a interrupção do treino.
A fadiga pode ser manifestada e agrupada em 2 categorias:
- Fadiga Nervosa (Sensorial, Mental e Emocional)
- Fadiga Física (Motora ou Coordenativa)
De forma muito resumida:
Fadiga Tissular: Associada ao esgotamento de substratos energéticos. Acumulação de metabolitos;
Isquemia (dificuldade de perfusão sanguínea por bloqueio);
Fadiga no Sistema de Comando: Associada sobrecarga se sinais e instruções do nosso sistema nervoso central (SNC); Esgotamento de neurotransmissores (ex.: acetilcolina – envolvida na memória e na aprendizagem). Levando muitas vezes à nossa desmotivação em continuar a atividade – treino.
Fadiga no Sistema Transporte de Nutrientes: Associada à isquemia, anemia, défice nutricional. Desequilíbrio hidroeléctrico e ácido-básico (parte da homeostase humana que diz respeito ao equilíbrio adequado entre ácidos e bases);
Gráfico que representa a origem da fadigo – adaptado de Zintl.
É importante sabermos identificar os vários indicadores de fadiga, para podermos avaliar atempadamente o impacto do estímulo de treino. Estes sinais podem ser classificados como objetivos ou subjetivos – ver figura seguinte:
Sinais de Fadiga.
Um dos sinais que marquei com fundo vermelho – Aumento da Frequência Cardíaca Base ou em repouso – é extremamente fácil de medir e muito prático.
Para quem treina regularmente é algo que devem registar diariamente ao acordar e até pós-treino. Eu tenho por hábito ao acordar medir a FC basal com um aplicativo gratuito que utiliza a câmera do smartphone – por norma a minha anda nos 47 / 48 bpm. Por isso nos dias onde durmo mal ou o treino da noite anterior foi muito intenso vou ver um valor acima das 50 bpm. Se for um valor muito acima, vou dosear a intensidade do treino nesse dia.
Como Melhorar a Recuperação entre Treinos?
A maioria dos praticantes de Jiu-Jitsu ou pelo menos quem já possui alguma experiência de treino sabe o que fazer para aumentar a intensidade do sparring. Seja aumentando a intensidade e transição entre posições, escolher parceiros de treinos mais experientes, mais fortes e explosivos ou até aumentar o número de rolas durante sessão.
Mas para garantirmos sustentabilidade no treino, conseguirmos chegar a faixa preta de forma saudável e poder continuar a treinar muito depois dos 40 anos de idade, é necessário entender o nosso corpo e ouvir o que ele tem para nos dizer – sendo extremamente importante saber recuperar entre sessões de treino e dosear a intensidade entre sessões de treino.
A mesma atenção que dedicamos à aplicação de estímulos de treino e à dosagem da intensidade do nosso treino deve ser aplicada igualmente à preocupação com a recuperação!